quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Através de um Espelho



E é com esta obra-prima trágica, também melancólica, que damos início à famosa “Trilogia do Silêncio” de Ingmar Bergman, diretor e roteirista. Há que se conferir os próximos, que apesar de diminuírem a dinamicidade, são igualmente belíssimos e geniais: “Luz de Inverno (1962)” -> ácido questionamento sobre a existência de Deus; e “O Silêncio (1963)” -> ideologia, hoje utópica, de uma recente e peculiar geração. Nenhum dos três filmes tem dependência de enredo, podendo ser vistos separadamente.

Nunca será pleno ou explicitado o motivo da trilogia ser nomeada de tal forma, creio que “o silêncio” tenha raízes nos conflitos pessoais, sociais e existenciais; dos quais diariamente temos contato. Felizmente (ou não) temos um - covarde? - mecanismo de defesa ou instinto de sobrevivência social: a repressão dos conflitos, mantendo-os fora do campo de consciência, assim alimentando um subconsciente carregado e altamente perturbado. Deus não escapa da trilogia, é alvo de especulação e minuciosa investigação. É justamente o silêncio, o sossego e a passividade divina (perante a vida) que são duramente questionados, porém nunca de maneira agressiva ou doutrinária. Bergman não fomenta interrogações nem dá pontos finais, fornece mais interrogações e algumas reticências. A fotografia de Bergman é bárbara. Seu grande parceiro, Sven Nykvist nos proporciona um deleite visual atingido com recursos mínimos! Vencedor de dois Oscars, iniciou a carreira com 19 anos, em 1953 se juntou à Bergman.

Nada como o soar das lágrimas de um violoncelo para dar início ao longa. O alvo dos instrumentos de corda é chegar perto da voz humana, Bach alcança esse objetivo com o prólogo de Através de Um Espelho, que talvez manifeste as almas dos quatro personagens que agora conheceremos:
David - Pai que não sabe se relacionar com os filhos. Sua incomunicabilidade vem em forma de frieza e covardia. Usa a doença da filha como inspiração literária.
Karin - Filha depressiva, herdou a doença da mãe já morta. Tem bruscas mudanças de humor e acessos de loucura, esforçando-se para permanecer equilibrada.
Minus - Filho talentoso que escreve peças de teatro. Admira o pai distante e está sempre chamando a atenção dele, torna-se um garoto carente apesar de ocultar.
Martin - Esposo de Karin que a ama intensamente e se sente impotente pela ironia de ser médico, mas não poder curar uma alma. É calmo e compreensível.

--> Minha analogia quanto aos quatro personagens remete a um misto do teatro grego e do russo, com atuações e passagens fortes, trágicas e com esplendor (claro que muito inferior). Karin me lembra “Medéia” de Eurípedes, enquanto vemos o complexo de Édipo na busca (sexual-afetiva) de Karin no irmão pelo pai ausente.

Sobre a trama: Seca, Precisa e Áspera - muito bem definida por Demétrius Ceasar - Sem qualquer artifício melodramático ou estereotipado, absolutamente crua e honesta. Revelando sempre o mais íntimo, o que nossas entranhas habilmente ocultam; alfinetando as fraquezas das personagens. David tem um drama popular: não sabe amar os próprios filhos, é medíocre e egocêntrico. Maior que a dor causada por essa incapacidade de comunicação e toque, é a súbita consciência de suas atitudes, que o assustam a ponto de envergonhá-lo. Uma parte em que isso fica claro, é quando ele partilha presentes para os três entes queridos e não agüenta encará-los na mesa de jantar, corre para dentro de casa e chora.

O cenário se baseia numa simples casa de lago, onde o excesso de portas e janelas remete ao simbolismo da necessidade de trocar de estados constantemente, de fugir das angústias e incertezas, revelando a provável doença de Karin: transtorno bipolar.
Ainda no começo do filme, Minus reúne a irmã e o cunhado para representarem uma peça (dele)para o pai. Peça teatral que antecipa a história da família, satirizando a fuga do pai em relação aos filhos (inclusive o pai já havia literalmente abandonado os filhos, viajando para Suíça).

Completados 30 minutos de filme, assistimos ao primeiro “acesso” de Karin: O sol nascia e ao longe uma buzina de navio era audível, sorrateiramente ela descobre-se e, com cautela, sobe até a “sala sinistra”. Inclina-se numa das frestas e parece escutar ruídos de crianças, estranhas vozes e sussurros. O trabalho corporal da atriz (Harriet Andersson) em conjunto com a fotografia, é de babar! Karin se encontra num estado de transe, rito de passagem para enfermidade mental. Movimentos calculados, misturando sutileza com agressividade e sempre explorando a sexualidade, parece que tem um orgasmo ao descer no chão, depois se arrependendo. A consciência vem à tona e o estado se esvai. O medo se instaura em Karin quando lê o diário do pai e descobre que sua doença não tem cura. David registra a doença (no diário) de forma detalhista, fascinado pela progressão do que está degradando a própria filha.



Duvidamos do amor de Karin pelo marido, que evita o sexo. Parece não ter mais o tesão que antes tinha. Alega ao esposo: “Martin, não seria bom uma mulher estável, calorosa e que trouxesse seu café na cama?” Ele retruca: “É você que eu amo, não quero outra”. Karin fica desapontada ao mesmo tempo em que pensamos: ou ela não ama Martin, ou não quer que ele sofra.

O clímax se dá quando Martin e David saem para pescar durante a tarde, deixando Karin e Mínus sozinhos. Karin deixa de ser recatada e privada, mostra-se muito mais sensual e libertina do que antes. Sente-se livre para expressar seus sentimentos com o irmão, abraça e beija o mesmo. Fuma e demonstra calor perto dele, contando que tem controle sobre sua doença e que Martin e David nunca entenderiam isso. Vai induzindo o irmão à pensar como ela a ponto de chantageá-lo na escada, após ele ter presenciado um acesso de raiva na sala sinistra: Leva Minus até a sala e revela ter uma intensa ansiedade por alguma manifestação divina, quer alcançar a paz e o aconchego da morte. Diz: “Ás vezes estou nesse mundo, às vezes no outro, não consigo evitar”. Despenca, começa a chorar nos braços do irmão que se encontra confuso e fragilizado. De repente grita e diz para ele sair, quer dormir no chão. Colocado numa situação delicada, Minus não sabe como agir, e se ela tentar suicídio? A porta bruscamente se abre e Karin está vibrante, pulando de alegria como se nada tivesse ocorrido. É aí que ela pega Minus pelos cabelos e o chantageia, dizendo para não contar a ninguém o que viu.

Na lancha, Martin joga a verdade na cara do sogro: o chama de insensível, procurador de tópicos (registro da doença da filha) e covarde. Mas um mestre nas fugas e evasões. Diálogo forte e picante entre os homens. David revela ter tentado se matar quando fugiu para Suíça: somente não o fez pelo motor do carro, que morreu antes do carro chegar à beira do penhasco. Toma esse fato como uma intervenção divina, eu creio. Finaliza o discurso contando que certo amor cresceu dentro dele, mesmo que reprimido, pelos filhos e o genro.

Antes da volta dos homens, Karin corre para dentro do barco destruído e Minus vai atrás. A chuva cai, o derramamento de líquido simboliza o incesto que ocorreu entre os irmãos no barco molhado. Os homens chegam e Karin decide internar-se, põe um vestido limpo e arruma suas coisas; tentada, dirige-se até a sala sinistra chegando ao auge de sua loucura: somente ela e Martin estão na sala, sendo que este está desesperado e muito preocupado. A porta de madeira abre e a mulher começa a espernear, gritar e agonizar. Um helicóptero chega para levá-la. Após muita tensão e dor, ela repousa debilmente na escada, sedada. Narra o que aconteceu após a abertura da porta de madeira: Deus entrou (ela o descreve como uma aranha) e foi até ela, queria entrar na mulher, mas essa não deixou e assim eles brigaram. De fato uma passagem boníssima que contém uma peculiar definição divina.

Nos últimos minutos do filme, encontramos pai e filho sozinhos. David finalmente conversa com Minus: “Não sei se o amor é a prova da existência de Deus ou se é o próprio Deus. Esse pensamento ameniza o meu vazio e meu desespero sórdido”. Minus responde: “Então Karin está cercada de Deus já que a amamos tanto”. Sim, mas tanto amor, tanto Deus, pode sufocar. E é com uma lágrima que Minus conclui: “Papai falou comigo”. A tela escurece.

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