quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Coletando PERSONA



“Na tela escura o carvão dos projetores se torna incandescente pouco a pouco até explodir em luz para que a película cinematográfica que corre nas rodas dentadas do projetor ganhem movimento e vida.”

O vigésimo sétimo filme de Ingmar Bergman, de partida, já começa a ser peculiar: “persona” era a máscara no teatro grego, também simbolizava o artifício que escondia a alma. Nosso diretor, também roteirista, casou-se com Liv Ullman na época do filme (1966). Liv, ao lado de Bibi Andersson, são as musas que se aventuraram pelo território - nada plano - da personalidade humana, são as atrizes que desferiram um duelo de máscaras por cada minuto dos 85 minutos que compõem a obra.

“Existir é atuar, o mundo é um palco.”

PB em plena década de 60. Motivo? Porque os sonhos são em preto-e-branco e Bergman filmava seus filmes como sendo pesadelos existenciais. Naturalmente há busca pela estética de terror, o que fica explícito no sinistro-psicodélico-metafórico prólogo: uma sequencia de abertura surreal que mistura fugazes imagens; passando por uma crucificação, pênis ereto, tarântula (símbolo divino), órgãos de um cordeiro e partes de filmes mudos. Nota-se que o diretor elimina sinais realistas, causas, pretextos, explicações para cada imagem e para a relação que se estabelece entre elas.

Enfim pousamos numa sala de hospital onde diversos corpos inertes repousam, apenas um foge à regra: o menino. Ele desperta. Agora reflito: desperta ou ressuscita? Ao longo do filme veremos que um adulto que faz parte da história ressuscitará, então fica a dúvida.

“Estávamos dormindo ou mortos, despertamos ou nascemos assim que o filme começa.”

O garoto observa a imagem desfocada de uma mulher. Ele toca a imagem, acaricia. É um modo de sugerir que a imagem de cinema é feita para ser tocada pelo espectador, interatividade virtual e absoluta.

“Ele toca a imagem e é tocado por ela.”

Porque tudo que não é dito em “Persona” encontra facilmente os caminhos da alma de quem o assiste/vive. Como o impacto daquelas primeiras imagens que ultrapassa uma necessidade de sentido “palpável” para compô-lo além de um nível racional, o que não implica na perda do sentido, mas na sua amplificação. Não é raro escutar comentários de repulsa e desgosto pela não compreensão da sequencia de abertura.

“Mais que visual ou textualmente, tudo é resgatado ao longo do filme num círculo mais profundo, o sensorial.”

Alma (Bibi Andersson) é uma enfermeira muito profissional e eficiente. Curiosa, não sucede em sua especulação para com o estranho caso de Elisabeth Vogler; mulher absolutamente sadia no que concerne ao físico. Sua enfermidade reside na alma perturbada, conta-se que a atriz desistiu de usar as palavras. Já não suporta mais ter que interpretar papéis, fazer caras ou falsos gestos; assim preferindo isolar-se e abrir a boca apenas para alimentar-se. Alma é hiperativa e verborrágica, tenta um infrutífero relacionamento com a paciente.



A enfermeira-chefe (Margaretha Krook) participa apenas do início, mas ainda assim é uma das mais fortes e sinceras personagens. Não usa eufemismos nem sutiliza suas palavras, que saem ásperas e objetivas de sua boca. Pondera a covardia (?) de Elisabeth a ponto de não mais querer encarar a vida. Aconselha-a a passar alguns dias na sua casa de campo, junto de Alma.

“Mas veja, a realidade não coopera. Seu esconderijo não é à prova d'água. A vida entra em tudo.”

No típico cenário bergmaniano, Alma parece cada vez se soltar mais e assim ir revelando sua alma energética e despreocupada, avoada. Fala pelos cotovelos, talvez por nunca ter tido a oportunidade ou no intuito de auto afirmar-se como pessoa segura, equilibrada. Observaremos quão frágil é seu temperamento, muito diferenciado - na verdade idêntico - ao de Elisabeth, que assiste e escuta a tudo com passividade e rigoroso silêncio; por vezes a acaricia, com os olhos cravados em cada trejeito de Alma, em cada risada estridente. O auge desse atípico relacionamento se dá na cena - tremendamente visual - em que a enfermeira narra sua orgia com dois meninos seguida de um aborto.

“Eu senti como nunca me senti antes quando ele espalhou sua semente em mim.”

Confessa que tem um relacionamento infeliz com o marido - Karl Henrik - e que simula sua felicidade no trabalho que julga tedioso. Elisabeth diverte-se com seu estudo doentio para com as confissões e atitudes de Alma. No próprio ato de fumar - antes não praticado por Alma - vemos a influência das mulheres que cada vez mais parecem se fundir, chegando a um ponto em que o espectador não vê mais uma enfermeira e uma paciente, mas íntimas amigas ou namoradas. Ao passo que Alma começa a amadurecer, elas iniciam fortes conflitos e discussões, onde a enfermeira sempre acaba fragilizada, detonada. Na última meia hora, o passado de Elisabeth é revelado, e desse, até mesmo um filho renegado faz parte. Alma obriga a outra a conversar sobre tal filho na cena da mesa, onde os dois ângulos são explorados; ela finalmente consegue despedaçar a paciente taciturna. Alguns flashes, closes muito próximos e montagens surreais contribuíram para dar dinâmica ao filme ao mesmo tempo em que poluíam a tensão conquistada.

“Um jogo de intoxicação pela memória, de quebra e estilhaço de personalidades. É o atestado absoluto de esquizofrenia dos extremos de ódio e amor não apenas bem mais próximos do que se imagina, mas duas faces de um mesmo e nocivo indivíduo, porque a maldade é manifestação pura, é o estado mais bruto e subterrâneo da alma.”